A cidade melancólica

RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA
João César Monteiro

Em Recordações da Casa Amarela (1989), vencedor de um leão de prata em Veneza 89, César Monteiro volta-se para o ambiente urbano contemporâneo, no caso a zona velha de Lisboa, onde os seus traços autobiográficos podem confortavelmente ser expostos.

«Na minha terra chamavam casa amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado, balbuciávamos: “Coitadinhos”... »

Na juventude de Monteiro, “Casa amarela”, era o que se chamava às prisões onde se deixavam os “negros”. O título do filme é então uma espécie de trocadilho com o livro de Dostoiévski92, Recordações da Casa dos Mortos, que contém uma narração autobiográfica sobre a passagem do escritor pela prisão. Neste filme a casa amarela não é uma prisão. É um manicómio .
A abertura do filme inicia-se com um monólogo de João de Deus sobre percevejos, enquanto é projectado um vagaroso travelling sobre Lisboa, filmada do Tejo, descobrindo uma das partes mais antigas da cidade, desde o Terreiro do Paço à Madre de Deus.
João de Deus vive numa pensão barata na zona antiga ribeirinha. Uma casa velha acha ele, mas que Dona Violeta corrige - “barrocas Senhor João. Isto foi casa de marqueses e marquesas, de príncipes de Portugal!”.
Monteiro inspira-se nas comédias portuguesas dos anos 30 e 40, ao retratar a vida bairrista de Lisboa e faz mesmo referência ao filme do Pátio das Cantigas de Francisco Ribeiro (1942) quando cita na Comédia de Deus “Ó Evaristo tens cá disto?”. Nas antigas comédias a temática da oposição cidade-campo era marcada pelo espaço urbano que se assemelhava ao mundo rural, transferido para os pátios e os bairros interiores. Nos filmes deste realizador essa temática é recuperada através da sua personagem perversa e libertina:
“João de Deus altera-se na cidade. Pertence a um mundo que já desapareceu. Pertence a um mundo rural, é-lhe difícil adaptar-se a um mundo urbano.”93

O Cinema e a música são os amparos de João de Deus: ele tem um poster de Erich von Stroheim94, ouve Schubert95 e encanta-se com o clarinete da menina Julieta.

“(...) é ou não função da arte a de nos ajudar a viver melhor?"

Recordações da Casa Amarela é também um filme sobre a maternidade, para além de vários planos de estátuas de Maria com Jesus ao colo e da sequência “dramática” da visita de João à sua mãe, quem marca definitivamente este tema é Mimi , uma prostituta que também vive na pensão, com quem João de Deus se envolve intimamente e descobre que vai ser mãe . Antes de morrer, por causa de um aborto mal feito, Mimi tem o seu grande momento: o plano das mãos de Mimi a dizer: “Bastar-me-á, então, enterrar ambas as mãos na terra para sentir que tudo nasce dela”.

Após a tragédia de Mimi, João de Deus transforma-se: depois da tentativa de violar a menina Julieta (filha de Dona Violeta) foge da pensão e torna-se mendigo. Nesta altura do filme Monteiro faz uma sequência documental de uns mendigos em fila de espera para comer uma sopa algures no centro da cidade.
João de Deus decide transformar-se novamente, num esforço final delirante veste-se de oficial e deambula pela cidade. Andando pelo passadiço provisório no meio do bairro de Lisboa que ardeu em 1988, com o modo de andar semelhante à da personagem EL de Buñuel, Monteiro testa as reacções espontâneas das pessoas : “As pessoas, de hoje em dia, andam muito distraídas na rua. Muito fechadas sobre si mesmas. Acho que já não reparam em nada.”

Este filme revela um ponto de vista angustiante sobre o estado da sociedade portuguesa - “O papel dos artistas é o de mostrar as dificuldades de uma sociedade, enquanto o do poder é tentar escondê-las.”

Depois de entrar num quartel João de Deus é mandado para um hospício.
No hospício um velho amigo internado confia-lhe uma missão - “vai e dá-lhes trabalho”. Segue-se o plano final do filme, catártico e expiatório, que funde a visão infernal de César Monteiro com a de Murnau100: João de Deus aparece vindo das entranhas da terra, dos vapores dos esgotos mal cheirosos de Lisboa, para tramar as belas donzelas. Bénard da Costa vai mais longe dizendo que é um vampiro tipicamente lisboeta: algo curvado, cinquentão, pedófilo e tarado.

“Fiquem os turistas com a ville blanche. Quem cá morrer sabe como tudo é escuro. Tão escuro que, no final - quando João de Deus reencarna em Nosferatu - João César não precisou de qualquer efeito para o enquadrar em décor expressionista.”

Serge Daney102, um amigo a quem Monteiro dedicou o A comédia de Deus, dizia que João de Deus era um monstro urbano, um homem que na cidade se tornava num monstro.
João de Deus, o anti-héroi, assume o Bem e o Mal, santo patrono dos pobres e dos aflitos, senhor dos hospícios, figura esquelética, é a “famigerada criatura que não resiste ao pecado” diz César Monteiro. Detentor de um perfil caricatural – o Nosferatu – que assim lembra o filme de Murnau e da sua personagem vampírica no filme Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (1922).
Lisboa tem um verso e um reverso, como Bénard da Costa refere, em que “o verso vê-se do rio e é bom para os poetas. O reverso vê-se em terra e é bom para os pintores.”
Mas são as surpresas que surgem para lá das fachadas pombalinas que César Monteiro quer mostrar. Porque “Quem vê caras não vê corações!”, esta cidade secretíssima está cheia de estranhos bairros, ruas, praças e becos que desconhecemos e que João de Deus nos apresenta vivendo-os de uma forma que desarma o mais céptico dos espectadores.


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